Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

sábado, 30 de março de 2013

Goios - a Páscoa numa aldeia minhota (1974)

 de Victor Nogueira (Notas) - Sábado, 30 de Março de 2013 às 16:17
 
Aqui na cidade [do Porto] a maioria das freguesias paroquiais já não têm "compasso", isto é, procissão pascal - o pároco leva a cruz às várias residências; por ser uma manifestação inadequada aos dias de hoje. Mas na aldeia [Goios, ao pé de Barcelos] (e não só) ainda as pessoas aguardam a visita pascal - o padre deslocando-se pelas aldeias, cujas casas aguardam a sua visita. Na sala de entrada, bolos secos e vinho. No ar estralejam foguetes ! As pessoas dizem: " O compasso vai na casa de Fulano, daqui a xis horas está aqui!" As horas vão diminuindo e eis que aquela malta irrompe pela sala dentro, o povo ajoelha-se para beijar a cruz, (mais ou menos devotamente), e depois começa a comezaina e a copofonia. Ah! Ah! Ah! Ao fim do dia de certeza que o padre e seus acompanhantes estarão já um tanto ou quanto toldados
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(...) São 16 horas e o meu avô já me chamou ali do lado para me pedir um favor, muito de mansinho: que me ajoelhe e beije os pés da imagem. Se o não fizesse seria um escândalo, que as pessoas reparam em tudo: "Então ele é um ateu ?!" Quem diria, o primo do senhor D. António [de Sousa] Barroso", [que foi] Bispo do Porto (e esteve em S. Salvador do Congo, em Angola) ! Enfim  
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Na varanda coberta e fechada e comprida para onde dão os quartos de dormir a família aguarda o compasso. O primo Adelino tem o gravador aos berros, transmitindo música de ranchos folclóricos. É uma música mexida e movimentada, própria para bailar. Gosto muito mais da música alentejana.

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Ali do guarda-fatos e das arcas retirou-se já a roupa domingueira. Estão todos enfiados nas fatiotas, colete, camisa de ver-a-Deus e gravata. Das arcas retiraram-se as cortinas, agora colocadas nas janelas, o soalho lavado, na casa velha cujo solo treme com o peso dos passos. Olho pela janela e a minha vista alcança os campos verdejantes, no meio da pequena e densa mata arborizada. O meu primo, dono da casa, sai descalço do quarto, sapatos e calçadeira na mão. O avô Barroso fala com o António e o resto da malta fala alto atrás de mim, enquanto o tio Zé [Barroso] está ali embrenhado na leitura dum "Précis de Statistique", dizendome que ainda não percebe para que serve a Estatística.

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Estralejam foguetes neste entardecer frio, cinzento e nublado. O compasso já está ali a dois passos: Vim agora da ponte que atravessa além o riacho, ao cimo da estrada, junto à pequena escola abandonada e arruinada onde o meu avô estudou.

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Trouxeram o televisor lá de baixo da cozinha, onde estivemos no Natal, Estão a transmitir uma tourada do Campo Pequeno [em Lisboa] e toda a gente está entusiasmada, esquecida de meditar na Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, nesta casa onde há imagens e estampas devotas nas paredes da sala de estar, para além das fotografias do já falecido "Senhor D. António "e do seu secretário e sobrinho, também padre mas que não chegou a bispo.

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A dona da casa, minha prima, pedeme que avise quando o compasso se aproximar. Pego em mim e venho até aqui à janela, assim transformada em posto de vigia. No peitoril continuo o relato dos acontecimentos.

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A malta ali na sala e na varanda está entusiasma: "Aquilo é que foi uma pega !"

 

A sineta toca e o compasso prepara-se para sair da casa do primo Manuel, nosso vizinho. Não, afinal não: acabou foi de entrar e o maralhal pode ainda assistir um pouco à tourada.

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A estrada está atapetada de flores, melhor, de pétalas.

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Reparo que sou o único barbado das redondezas. Tenho desculpa (terei ?) porque sou da cidade.

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A televisão pode mais que o Nosso Senhor!.

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O compasso veio, as pessoas foram para a sala de entrada. Toca a sineta, que um miúdo traz adiante; uma cruz florida transportada por um homem de opa vermelha é dada a beijar às pessoas - que não se ajoelham - e o jovem seminarista aperta a mão aos presentes, desejando Boas Festas. Seguese uma "orgia" de apertos de mão e votos de boas festas. Alguns velhotes detêmse a falar com a sra.Elvira, criada do avô Barroso. Este está muito sorridente, apresenta a filha "que é professora em Luanda" e o neto. Não posso deixar de sorrirme e enternecerme com o ar jovial do avô, enquanto cumprimento "gravemente" as pessoas.

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É para aí o 5º compasso em 8 anos e alguns destes homens são "habitués" nestas andanças (Sempre se come e bebe à custa dos outros). Mas ainda o compasso não abandonou a casa e já os meus primos e alguns amigos se precipitam para o televisor, "onde" um forcado é retirado de maca do redondel.

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São 18:20 e ainda estralejam foguetes. O pessoal continua a assistir à tourada. A prima Clementina - mãe das que vimos a conduzir um carro de bois - tem um linguarejar (pronúncia) muito catita. Ali na outra casa [do primo Manuel] só se fala de terras e riqueza! Safa! Fazem parte da "elite" cá do sítio. Mas enquanto que os filhos do José são folgazões e desinibidos, mais que o pai, os do Manuel são muito acanhados

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A senhora Elvira foi visitar uma amiga e ainda não voltou. A tourada já terminou e agora transmitese um programa de ginástica. (MCG - 1974.04.16)

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 NOTA  - Em 1976, com a morte do meu avô Barroso e com o meu casamento com a Celeste, perdi o contacto com os primos de Barcelos (Goios e Pedra Furada). Em 1989, sediados no Mindelo no Verão, fui com a minha mãe, o Rui, a Susana e a Joana Princesa a Goios, para (re)vermos os primos. Mas uns tinha morrido, os mais sociáveis, e os outros nem apareceram, deixando-nos a secar na estrada. Como na altura me não lembrava do nome (/apelido) dos da Pedra Furada, não fomos a esta aldeia, onde regressei mais tarde, com a Fáfá das Caldas, mas apenas numa das nossas múltiplas deambulações turísticas por Portugal de lés a lés, amiga, navegadora, auxiliar de fotógrafo e script-girl dum Livro de Viagens inacabado do qual restam milhares de fotos e o borrão duma «peregrinação» em livro inacabado, cada vez mais perdido nas brumas do tempo e da memória.

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VN in RETRATOS...
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Num dos meus diários há uma outra referência a uma Páscoa em Goios/Pedra Furada
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No dia 14 [Abril. 1963], domingo de Páscoa, fui, com o avô Barroso e o tio Zé a Goios, passando por Famalicão. Almoçámos em Goios, tendo me aborrecido imenso. O "compasso" chegou por volta das 17 horas. À tardinha fomos para a Pedra Furada. Revi com prazer a Lourdes e a Cândida, e fiquei a conhecer a Celeste e a Amélia. Divertimo-nos bastante. (Diário III - pag. 165)
 
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Fomos a Goios, aldeia onde nasceu o meu avô Barroso. As estradas da Metrópole são boas e arborizadas. (Diário III - pag. 61) 
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Fomos a Pedra Furada, a casa da Senhora Deolinda, minha prima em 2º grau. Fica para os lados de Goios, Barcelos, pela EN 13. (...) Os campos estavam inundados devido às chuvadas que têm caído ultimamente. Que diferença entre estas estradas e as dos arredores de Luanda ! Só em Nova Lisboa é que a paisagem é semelhante.
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Há eucaliptos, pinheiros e videiras ao longo dos caminhos. Apetece passear por aqui. Há uma parte da estrada que é recta, sendo por isso conhecida por "recta do Mindelo. Chegámos ao Mindelo perto das 15 horas. O céu estava bonito, azul, com núvens brancas. Passámos por Vila do Conde.
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Pouco depois entrámos na estrada de Guimarães, um pouco antes da Póvoa de Varzim. Há aqui um aqueduto muito antigo, nalguns sítios arruinado. Às 15:15 h seguíamos na EN 206 e às 15:20 h na EN 306. Começou a cair saraiva e pouco depois chegámos a casa da senhora Deolinda (prima Deolinda). 
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A casa é pequena e modesta, mas da janela vê-se uma linda paisagem. Em casa estava a sobrinha dela, a Maria Cândida, uma rapariga toda jeitosa, morena. Tem o 3º ano do Liceu e quer ser enfermeira. (...) Mais tarde chegou o filho da sra. Deolinda, o José Manuel, 10 anos, e antes chegara o irmão, Manuel, um rapaz simpático, mas infelizmente surdo-mudo,  com quem me entendia gestualmente. 
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Estes meus primos são muito mais simpáticos que os de Goios, que são muito envergonhados. Não pude conhecer as minhas outras primas, pois como era dia de trabalho, estavam na fábrica em Barcelos. (...) Regressámos a casa de noite. (Diário III, 1963.02.14) 
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Fora o registo dessa Páscoa (1974), que não seria muito diferente das anteriores em que participei, nada mais devo ter anotado por escrito. Era para mim uma festa encontrar-me com os meus primos e primas de Goios e da Pedra Furada, da minha idade, e de quem perdi o rasto pois entretanto casei, o meu avô morreu, eu fixei-me em Setúbal e as férias passaram a repartir-se entre o Baixo Alentejo e o Porto/Vila do Conde. Para além disso lembro-me que nas noites de inverno gostava de sentar-me ao lume da cozinha, vendo a dança das chamas, impregnando-se a roupa daquele cheiro  característico. Não sei se  o meu tio José de que fala é de facto o irmão da minha mãe, pois este era alto, nada franzino, embora folgazão. Como fora seminarista uma vez casou-me com uma das minhas primas (todas elas muito bonitas, como aliás tinham boa figura os rapazes). Não me lembro já é se o "casamento" foi com a Cândida ou com a Celeste.  [a publicação num dos meus blogs da Páscoa de 1974 fez com que Paulo Lobarinhas, muito mais  novo que eu, que está a escrever uma história de Goios, onde nasceu, contactasse comigo e desde então tenho sabido da história da minha família e, graças ao Paulo, poderei reatar os laços com a minha família de Barcelos].
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Meus primos de Barcelos

                         o Manuel o Joaquim a Laurinda

                         a Deolinda a Celeste a Cândida

                         e tantos outros

                         tímidos uns

                         alegres rosados e folgazões outros

Meus primos espalhados pelo mundo

                                            pelo Brasil Alemanha Venezuela e terras de França.

 

Minha família grande e dispersa                            

                         conhecida e desconhecida

                         que a vida e a morte têm separado

 

Perdidos cada vez mais

                 na bruma dos tempos e da memória!
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do meu poema Elegia pela minha família dispersa - 1985.Novembro.13 (2)  -  Setúbal
 
 
 
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Na casa de Goios - Na janela eu e o meu tio Zé Barroso (foto MENS)

Em Goios (foto MENS)

com o meu avô Barroso no Bom Jesus de Braga (foto a la minuta)

a casa de Goios na actualidade (foto Paulo Laborinhas)

6ª feira-santa

de Victor Nogueira (Notas) - Sábado, 30 de Março de 2013 às 17:42
 
 
Ah! 15 horas!
 
Sim, foi há uns dois mil anos
 
Houve um Deus feito homem
 
- ou um Homem feito deus -
 
não sei bem.
 
A memória dos homens é fraca.
 
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Mas, ... não interessa
 
Há dois mil anos alguém morreu numa cruz
 
Vejam lá!
 
Até disse coisas simples
 
"Que o vosso falar seja sim, sim,
 
"Amai-vos uns aos outros!"
 
"Perdoai as nossas ofensas
 
"Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido"
 
Tudo coisas neste género,
 
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Bem, também falou em choro e ranger de dentes
 
em maus servos,
 
infiéis,
 
Lembro-me, bem, lá lembrar não lembro
 
- ainda não era nascido
 
pois, lembro-me
 
NÃO!
 
Dizem-me que esse alguém disse
 
para não cortar as ervas daninhas
 
antes de vir o tempo da ceifa,
 
não fosse estragar-se a seara.
 
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Foram assim coisas nesse género.
 
Coisas simples..
 
Pois só os simples as entendiam.
 
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"Não julgueis para não serdes julgados"
 
Parece-me ser também de sua autoria.
 
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Não interessa.
 
Deve ter sofrido muito
 
-até chorou lágrimas de sangue! -
 
Vejam lá!
 
A mesma multidão que lhe cantou hosanas
 
ululou selváticamente no Calvário
 
- não confundir com o António.
 
Não brinco.
 
Sei quanto pesa a solidão,
 
a traição dos amigos
 
o sono dos que dizem acompanhar-nos
 
Ah! sei! Oh! se sei!
 
Quão pesados são os risos de escárnio
 
as galináceas multidões
 
cacarejando
 
aos uivos.
 
E eu não tenho pretensões de morrer
 
para salvar as meus irmãos
 
- só dou para alguns.
 
.
 
Dizem que foi há dois mil anos
 
que os seus frágeis ombros de Homem feito deus
 
ou Deus feito homem
 
suportaram o pesado madeiro
 
feito das nossas lágrimas,
 
dos nossos desesperos,
 
das nossas angústias,
 
das nossas raivas,
 
das nossas faltas
 
que não são nossos,
 
mas do Adão e da Eva.
 
.
 
Morreu sózinho,
 
abandonado,
 
numa a cruz
 
ladeado por dois ladrões
 
- o bom e o mau,
 
o Judas e o João
 
o espírito e a matéria
 
o homem e a mulher
 
o lupanar e a igreja
 
Gabriel e Lúcifer
 
o bem e o mal ...
 
.
 
Dizem que foi por mim, por nós.
 
.
 
Depois
 
os homens pegaram na sua solidão
 
Institucionalizaram-na
 
(é um termo bonito)
 
Juntaram-lhe artigos
 
alíneas,
 
parágrafos,
 
ritos
 
gestos
 
penumbras,
 
trindades,
 
Trentos e Vaticanos.
 
.
 
"Quem não for por mim
 
é contra mim!"
 
.
 
Organizaram-se cruzadas
 
Alcácer Quibir
 
a Inquisição
 
o Index
 
os autos de fé
 
- ah! o fogo purificador -
 
Vá, em fila
 
Auschwitz Bergen-Belsen
 
.
 
Está tudo bem escrito
 
o que deve fazer-se
 
o que não deve fazer-se
 
artigo 8º e suas alíneas
 
É preciso estudar muito
 
Direito Natural
 
Doutrina Social da Igreja
 
Filosofia
 
Teologia
 
Teodiceia
 
Direito Canónico
 
Internacional Público
 
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Ética
 
e muita matemática
 
cálculo infinitesimal
 
para extrair a média aritmética
 
da raiz quadrada disto tudo
 
(parto sem dor)
 
e planificar bem. a distribuição dos pecadores
 
e dos bem aventurados,
 
para que não haja inflação
 
para que se equilibrem
 
as curvas da oferta e da procura.
 
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Hoje não se come carne·
 
nem se ouve música
 
deve comungar-se ao menos·
 
uma vez cada ano
 
Pela Páscoa da Ressurreição
 
Domingo
 
Mete-se a moeda
 
sai a confissão - perdão - absolvição
 
despache-se
 
não vê a multidão
 
enorme
 
quedesejalavaraalma?
 
 
 
 
1969.Abril.04  - Évora
 
 
 
 
 
se quiseres, vê "A Páscoa em Goios, uma aldeia minhota (1974)"
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